Medidas e propostas de combate e mitigação de efeitos da turistificação e da gentrificação turística na cidade de Lisboa

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O problema da gentrificação pelo turismo pelo qual a cidade de Lisboa tem vindo a passar requer a tomada de medidas integradas e a diferentes escalas, níveis e sectores (turismo, habitação, comércio, equipamentos colectivos e infraestruturas, etc), que se executadas de forma avulsa ou individualmente nunca resolverão verdadeiramente o problema, se não entendidas e aplicadas de modo holístico. Contudo, subjacente a todas elas estão dois princípios fundamentais que aprofundam a aliança da democracia representativa com a democracia participativa, no contributo para a resolução do problema.

foto de L Rolo

Mendes, L. (2016) – “Medidas e propostas de combate e mitigação de efeitos da turistificação e da gentrificação turística na cidade de Lisboa”, Debate Quem vai poder morar em Lisboa? Da gentrificação e do turismo à subida no preço da habitação: causas, consequências e propostas. Trienal de Arquitectura de Lisboa, Lisboa. [policopiado]

MEDIDAS E PROPOSTAS DE COMBATE E MITIGAÇÃO DE EFEITOS DA TURISTIFICAÇÃO E DA GENTRIFICAÇÃO TURÍSTICA NA CIDADE DE LISBOA

pelo qual a cidade de Lisboa tem vindo a passar requer a tomada de medidas integradas e a diferentes escalas, níveis e sectores (turismo, habitação, comércio, equipamentos colectivos e infraestruturas, etc), que se executadas de forma avulsa ou individualmente nunca resolverão verdadeiramente o problema, se não entendidas e aplicadas de modo holístico. Contudo, subjacente a todas elas estão dois princípios fundamentais que aprofundam a aliança da democracia representativa com a democracia participativa, no contributo para a resolução do problema.

 

Primeiro, o de que precisamos de um Estado mais eficaz, com capacidades para a concepção, implementação e avaliação de políticas públicas de habitação e turismo. Neste campo, é necessário reforçar o poder municipal local como agente regulador do desenvolvimento turístico na cidade. Não basta ter uma missão clara, estratégias e objectivos ou financiamento adequados. As capacidades do Estado (capacidade técnico-burocrática e administrativa, a capacidade jurídica, a capacidade de infra-estrutura e capacidade fiscal) são necessárias para mobilização políticas de regulação para produzir uma cidade da maioria e do colectivo.

 

Segundo princípio: dinamização dos movimentos sociais urbanos de defesa do direito à habitação e à cidade que se aliam à luta dos residentes do centro histórico (associações locais de moradores, activistas, associações de inquilinos, comissões de moradores, colectividades/associações culturais ou desportivas de bairro, etc), sempre numa lógica auto-gestionária e de auto-organização. Estes movimentos devem articular-se com outros de narrativa contrahegemónica e de resistência e combate à ofensiva neoliberal que assola o espaço urbano e que, à semelhança do que se está a passar em todo o mundo, crescentemente percebem as potencialidades e eficácias do trabalho em rede e da pluriescalaridade das lutas. Só assim estes movimentos podem ganhar e alargar a sua base institucional em articulação com os poderes públicos e a democracia representativa.

 

As medidas que se seguem são particularmente importantes para manter e fixar a população nos/dos bairros do centro histórico de Lisboa, uma das cidades europeias com a mais baixa densidade populacional.

 

 

Assim, propomos 3 níveis de actuação, do mais geral para o mais particular:

1 – Inovação crítica na concepção e implementação de processos locais de regeneração urbana.

    1. Dar continuidade a uma política de reabilitação urbana pelas pessoas e para as pessoas que valorize o direito à habitação, em detrimento de grandes e espectaculares intervenções de renovação e restauro para alienação de património público e sua venda ao desbarato em benefício do capital e investimento estrangeiros.
    2. Promover o uso temporário de edifícios e espaços públicos, numa perspectiva colectiva e comum, em detrimento de uma lógica de mercado e meramente privada. Incentivar os projectos de reabilitação de baixo custo com base num planeamento urbano de proximidade.
    3. Estimular a participação de vários actores públicos, moradores, ONGs e / sociedade civil do sector privado, bem como stakeholders nos processos de regeneração urbana, doravante a uma escala local de maior proximidade.

2 – Princípios, políticas e práticas para impedir o desalojamento e a expulsão.

2.1. Proteções de base para os moradores mais vulneráveis, de forma a: i) manter as pessoas nas suas casas mediante pressões do potencial uso turístico, prevenindo o desalojamento forçado levado a cabo por promotores e investidores do mercado imobiliário; ii) garantir que os novos recursos da habitação a preços acessíveis são disponibilizados para aqueles que mais deles precisam; e iii) garantir medidas de compensação para apoio dos moradores afectados, sempre que o desalojamento ocorra.

2.2. Produção e preservação de habitação a preços acessíveis. O stock de habitação a preços acessíveis deve ser entendido para incluir qualquer habitação propriedade pública ou privada que seja acessível para famílias com rendimento abaixo de 80 por cento do salário mínimo, por exemplo.

2.3. Estabilização da população e das comunidades existentes. A fim de evitar o rápido aumento do preço do imobiliário e o desalojamento resultantes do súbito afluxo de investimento em bairros historicamente desinvestidos, a cidade deve mover-se em direcção a uma abordagem de desenvolvimento equilibrado que envolva investimento contínuo e regular para manutenção e conservação da habitação, mas também do comércio local, entre outros equipamentos e infra-estruturas dos bairros, recursos vitais da comunidade. Estas medidas devem aplicar-se em todos os bairros, mas especialmente naqueles cuja população aufere um rendimento baixo ou moderado, e que apresente uma história de desinvestimento.

2.4. Promover abordagens baseadas no não-mercado para habitação e desenvolvimento comunitário. A influência negativa da especulação ou de qualquer outra forma de geração de lucro fácil baseada na propriedade e desprovida de investimento na comunidade local, deve ser activamente desencorajada. Tal requer implementar políticas para penalizar todo e qualquer investimento especulativo, a fim de reduzir a quantidade de propriedade transacionável que possa catalisar aumentos dos preços da habitação e desalojamento.

2.5. Planeamento como um processo participativo. Promover a participação cívica e associações de base local. Se os projectos e planos forem projetados para beneficiar os moradores existentes com base nas suas necessidades e prioridades, o risco do desalojamento ou de outras consequências nefastas para a comunidade existente são menos prováveis de ocorrer. A fim de assegurar que o desenvolvimento se baseia realmente nas necessidades dos residentes existentes, os processos de planeamento e desenvolvimento comunitário devem não só envolver a participação de moradores das comunidades afectadas, mas também de todos os actores públicos e privados de base territorial do bairro.

3 – Tomada de medidas e iniciativas concretas para assegurar o “direito à habitação”, em detrimento da “gentrificação pelo turismo”

    1. Não permitir, em nenhuma circunstância, processos de despejo em que não estejam devidamente asseguradas alternativas dignas ou meios de subsistência suficientes, devendo forçosamente analisar-se a situação familiar e encontrar-se os meios adequados para o apoio às famílias em caso de incapacidade financeira para manter a habitação;

 

    1. Combater a especulação imobiliária e promover um mercado social de arrendamento, unidades de renda social controlada na cidade centro:

 

  1. Reabilitação urbana de propriedades/edifícios de propriedade municipal ou estatal para uso como residência temporária para populações vulneráveis;
  2. O município, que dispõe de um vasto património imobiliário em toda a cidade, deve requalifica-lo e mobilizá-lo para uso afeto de bolsas de arrendamento a custos controlados, regulando o mercado imobiliário, limitando os custos do arrendamento residencial tradicional, garantindo uma oferta habitacional a preços acessíveis, sobretudo para os mais vulneráveis;
  3. Criar um regime especial de tributação do parque imobiliário destinado ao arrendamento habitacional clássico a preços controlados, promovendo fiscalmente este segmento de acesso à habitação a custos acessíveis;
  4. Urge também, neste sentido, estancar a concessão a privados e a alienação do património imobiliário municipal que perverte a aplicação de uma política de planeamento urbano justa, do bem comum e por uma cidade inclusiva, a favor da mercantilização, especulação e financeirização do espaço urbano; grande parte dos activos imobiliários municipais e estatais que têm vindo a ser alienados são de imóveis classificados e de terrenos de elevado valor estratégico e urbanístico, que podiam ser preservados para a prossecução de uma futura política urbana alternativa, pela coesão social e justiça espacial;
  5. Obrigar à colocação, no mercado, dos fogos devolutos, penalizando de forma eficaz o abandono dos alojamentos com fins especulativos.

 

    1. Reassumir a política fiscal municipal enquanto importante instrumento de regulação do mercado imobiliário:
  1. O poder municipal deve criar sanções, incluindo impostos e taxas, para o desenvolvimento ou actividade de investimento que se concentra na geração de lucro sem benefícios para os residentes existentes;
  2. Activação de instrumentos fiscais para estimular a reabilitação urbana para uso residencial permanente;
  3. Adoptar o “licenciamento zero” apenas para projectos de reabilitação para uso exclusivamente residencial;
  4. Agravar o IMI (Imposto Municipal sobre Imóveis) no caso da reabilitação urbana ser empreendida para o desenvolvimento de projectos de turismo, minimizando o IRS, o IRC e o IVA;
  5. Agilizar o desbloqueio das casas vazias, com penalização fiscal dos proprietários que as mantenham desabitadas e devolutas;
  6. Penalizar o investimento especulativo, criando novos impostos de propriedade que agravem penalizações sobre os espaços desocupados.

 

    1. Apelar a uma maior articulação da CML com a plataforma e organização Airbnb (plataforma de home sharing que tem tido uma importante contribuição para a economia da cidade, na criação de emprego e geradora de receitas como complemento do orçamento familiar, mas que tem sido, igualmente, responsável por muita da turistificação registada), no sentido de uma crescente regulação, responsabilidade e sustentabilidade no sector do alojamento local para turismo, que vá para além da simples cobrança da Taxa Turística e o Alojamento Local Responsável;
    2. Fomentar estudos de diagnóstico com o apoio e principal interesse da câmara municipal, que monitorizem evoluções na oferta turística no sector do imobiliário no centro histórico e que estudem a viabilidade de aplicação de índices de capacidade de carga turística por secção/quarteirão de bairro para o alojamento turístico;
    3. Sensibilizar as associações de moradores e as assembleias de condóminos para se implicarem em formas de compromisso colectivo e consenso democrático que faça depender a criação de apartamentos para acomodação/alojamento turístico, de autorização do condomínio: por exemplo, pode propor-se um aumento do custo do condomínio para quem tem apartamentos arrendados a turistas, já que um maior fluxo de pessoas aumenta o uso das partes comuns dos edifícios;
    4. Propor um referendo à população dos bairros históricos sobre propostas de regulamentação de propriedades para alojamentos turísticos, dando cumprimento à Lei Orgânica 4/2000, de 24 de Agosto, que prevê a realização de referendo de âmbito local em matérias de relevante interesse local que devam ser decididas pelos órgãos autárquicos municipais ou de freguesia e que se integrem nas suas competências, quer exclusivas quer partilhadas com o Estado Central;
    5. Revisão da Lei do Alojamento Local, Decreto-Lei n.º 128/2014, de 29 de Agosto, que aprova o regime jurídico da exploração dos estabelecimentos de alojamento local, bem como do Decreto-Lei n.º 63/2015, de 23 de Abril, que introduz alterações ao primeiro; no sentido da Lei ser mais restritiva e reguladora do alojamento local, à semelhança de outras cidades (Ex: Barcelona, Paris, Berlin, Nova Iorque, Londres, São Francisco), limitando a proliferação desmedida dos alojamentos locais e hostels, diferenciando alojamentos colectivos de particulares, mas também estabelecendo limites claros de licenciamento a cada requerente, ao número de estabelecimentos licenciados em cada prédio mediante percentagem das fracções urbanas em cada um deles, entre outras;
    6. O município deve recuperar, nas suas plenas competências como agente de planeamento urbano, a possibilidade de decidir sobre limitações de licenciamento de estabelecimentos de alojamento local, já que a figura do licenciamento para uso residencial se encontra subvertida no caso desta actividade, pois a fruição do alojamento não é a de clássica residência a longo prazo, mas de alojamento turístico short rental;
    7. Aplicar uma política de uso do solo que preveja usos mistos (residencial, comercial, serviços, turismo, indústria compatível, equipamentos colectivos) de forma equilibrada à escala do município, bairro e quarteirão; aplicação de um sistema de quotas (1/3 habitação, 1/3 comércio, serviços, turismo, 1/3 equipamentos colectivos) que garanta um mix funcional (atendendo à especificidade da área urbana em causa) essencial à manutenção da vida social e económica do centro histórico, à sua coesão, apropriação diferenciada e resiliência, ao invés da tendência de monofuncionalidade e hiperespecialização económica no sector turístico que descaracteriza os bairros históricos e torna o tecido social e económico da cidade mais vulnerável à volatilidade da procura turística internacional ou a uma crise no sector;
    8. Transferência urgente por parte da Câmara Municipal de Lisboa para as Juntas de Freguesia das matérias relacionadas com o licenciamento da emissão de ruído;
    9. Rever a nova lei do arrendamento urbano, a fim de salvaguardar os direitos de habitação dos inquilinos (de acordo com o previsto no Programa do Governo da Cidade de Lisboa para 2013-2017);
    10. Reter na cidade, e sobretudo nas comunidades mais afectadas pela turistificação, uma parte significativa das mais-valias económicas, criando canais de redistribuição dos benefícios/receitas geradas pelo turismo nos bairros, orientando-as, de forma transparente, para projectos sociais na comunidade;
    11. Dotar as autarquias e o Estado de meios eficazes de combate à especulação imobiliária e à corrupção urbanística, simplificando e tornando mais transparente a legislação nos domínios do planeamento e urbanismo, e tornando os municípios menos dependentes do licenciamento para se financiarem (o que implica rever, a médio/longo prazo, a lei das finanças locais).

 

Referências

AA VV. (2016), “Quem vai poder morar em Lisboa? Da gentrificação e do turismo à subida no preço da habitação: causas, consequências e propostas”. Trienal de Arquitectura de Lisboa, Lisboa. Disponível em: http://www.revistapunkto.com/2016/06/quem-vai-poder-morar-em-lisboa-debate.html

 

CML (2011), Plano de Pormenor de Salvaguarda da Baixa Pombalina. Lisboa. Disponível em: http://www.cm-lisboa.pt/fileadmin/VIVER/Urbanismo/urbanismo/planeamento/pe/salvaguarda/dr.pdf

 

Coordenadora Concelhia de Lisboa do Bloco de Esquerda (2016), Direito à Cidade e Direito à Habitação em Lisboa, documento provisório. Plenário de 15 de Junho. Junta de Freguesia de Santa Maria Maior, Lisboa. [policopiado]

 

Habita (2012), Carta Aberta pelo Direito à Habitação, Lisboa. Disponível em http://www.habita.info/2012/11/a-carregar_21.html

 

Habita (2016), Situação de Emergência Habitacional: Proposta de Medidas, Lisboa. Disponível em http://www.habita.info/2016/01/habita-inicia-ronda-de-audiencias-com.html

 

Just Cause (2015), Development without Displacement: Resisting Gentrification in the Bay Area. São Francisco. Disponível em: http://cjjc.org/images/development-without-displacement.pdf

 

London Tenants Federation; LEES, Loretta; Just Space; Southwark Notes Archive Group (2014). Staying Put. An Anti-Gentrification Handbook for Council Estates in London. Londres, Calverts. Disponível em: https://southwarknotes.files.wordpress.com/2014/06/staying-put-web-version.pdf

 

MENDES, Luís (2016), “Tourism gentrification: touristification as Lisbon´s new urban frontier of gentrification”, Master Class Tourism Gentrification and City Making, Stadslab e Academia Cidadã, Lisboa, 16 de Abril. Disponível em: https://www.academia.edu/24474010/Mendes_Lu%C3%ADs_2016_Tourism_gentrification_touristification_as_Lisbon_s_new_urban_frontier_of_gentrification_Master_Class_Tourism_Gentrification_and_City_Making_Stadslab_e_Academia_Cidad%C3%A3_Lisboa_16_de_Abril._policopiado_

 

TOSICS, Ivan (2015), Less money, more innovation. Regeneration of deprived residential areas since the crisis. Disponível em:  http://www.urbact.eu/less-money-more-innovation-regeneration-deprived-residential-areas-crisis

 

 

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