A segunda gentrificação de Lisboa
Vista pelos olhos de um investidor imobiliário, qualquer gentrificação é um processo irresistível. Pelos olhos de quem habite ou deseje habitar um centro histórico, é uma arbitrariedade esmagadora. Por Pedro Bingre do Amaral.
Habitantes, antigos e novos
Em meados do século XX, a malha antiga desta cidade ocidental começou a sofrer alterações intensas na estrutura social que a habitava. Os bairros operários construídos entre a revolução industrial e o pós-guerra definharam à medida que as fábricas se transferiram para outras paragens. Os bairros portuários depauperaram-se à medida que estivadores, marinheiros e pescadores dos bairros portuários perderam os seus empregos quando as docas e as embarcações passaram a ser servidas por máquinas mais eficentes que os trabalhadores braçais. Os bairros de classe média entraram em declínio assim que os seus habitantes remediados começaram pela primeira vez a aceder ao crédito hipotecário, deixaram de arrendar a sua habitação, e compraram casa própria nos novos subúrbios.
A partir da década de 1980, contudo, este processo de despovoamento e de pauperização tomou novo rumo. Uma nova e numerosa geração de profissionais liberais tornados prósperos pela economia pós-industrial do ocidente começou a procurar os bairros antigos do centro, cuja população entretanto se reduzira e empobrecera. Estes novos habitantes dispuseram-se a pagar rendas mais elevadas pelos prédios, expulsando do mercado de arrendamento os antigos arrendatários com baixo poder de compra. Por seu turno o aumento das rendas empolou o valor patrimonial tributário das casas, de modo que até mesmo os vizinhos que habitavam em casa própria passaram a ser expulsos de suas propriedades devido ao agravamento da carga fiscal sobre os imóveis.
Esta cidade ocidental foi Londres. Ou Edimburgo. Ou Boston. Ou São Francisco. Ou qualquer uma de dezenas de outras urbes europeias ou norte-americanas onde se deu o processo chamado gentrification[i].
As rendas e os impostos
Para que ocorra “gentrificação” de uma cidade ou de um bairro é contudo imprescindível algo mais que a competição imobiliária entre antigos residentes e recém-chegados que desejam aí habitar. São precisas leis propícias à irradiação dos habitantes com menor poder económico. Numa primeira fase não basta que os recém-chegados tenham maior poder de compra que os antigos residentes: é necessário que a legislação de arrendamento seja favorável aos interesses do senhorio e lhe permita aumentar rapidamente as rendas, despejando de modo expedito os inquilinos que forem incapazes de pagar os novos e mais elevados valores. Numa segunda fase é essencial que os impostos sobre o imobiliário reflictam o aumento do valor patrimonial dessa localização e sejam agravados para todos os prédios — mesmo aqueles que não são arrendados, mas sim habitados em propriedade — desterrando dessa forma os proprietários incapazes de suportar o agravamento da carga fiscal causada pela gentrificação. Dito de outra forma, a gentrificação carece de leis que lhe permitam expulsar depressa os arrendatários por via do aumento das rendas e os proprietários por via dos impostos.
A primeira gentrificação
Lisboa sofreu tardiamente o processo de gentrificação: em meados da década de 1990 já estavam reunidas as condições económicas e sociais para que tal se iniciasse, mas faltavam as condições jurídicas e tributárias. Tal como ocorrera antes noutras cidades ocidentais, a partir de 1990 os bairros centrais lisboetas já estavam em franco empobrecimento e despovoamento. Nalguns deles, como o Bairro Alto, o influxo de recém-chegados mais abastados compensou em certa medida a redução do número de antigos habitantes — mas, ao contrário do que seria de esperar, não houve competição pelo imobiliário capaz de expulsar os residentes originais. A legislação de arrendamento, que até 2012 era muito favorável ao arrendatário, impediu os aumentos súbitos das rendas que seriam de esperar; e a tributação sobre imóveis, que foi irrisória até 2003, não pesava sobre os proprietários dos prédios de localizações valorizadas pela nova procura. Por estes motivos até 2012 Lisboa só parcialmente foi afectada pela gentrificação que assolou tantas outras cidades: perdeu muitos habitantes antigos, mas não todos; recebeu muitos recém-chegados, mas não os suficientes para ocupar o crescente número de casas devolutas; manteve rendas permanentemente baixas, mas que inibiam os senhorios de arrendar; e permitiu que uma contribuição autárquica sobre o património fosse leve ao ponto de premiar o não-uso dos edifícios.
A segunda gentrificação
Em 2016, os centros históricos das cidades ocidentais sofrem uma segunda vaga de gentrificação, mas desta feita causada por factores inéditos. Os recém-chegados já não procuram residir nelas, mas visitá-las numa curta estadia. Como a nova legislação turística liberalizou radicalmente os mercados de alojamento hoteleiro, passou a ser possível arrendar habitações por poucos dias — transformando-as em hostels improvisados— e desse modo multiplicar por dez a renda anual desses prédios. Mais uma vez os antigos arrendatários são despejados, mas desta feita em favor de turistas.
E mais uma vez os proprietários antigos são também alijados pelos impostos patrimoniais, sendo substituídos por novos investidores que, fugindo dos mercados de capitais (as bolsas e as dívidas soberanas deixaram de ser rentáveis devido à crise financeira iniciada em 2007), adquirem prédios que sirvam de resguardo da sua fortuna e permitam retornos muito elevados por via do arrendamento turístico. No contexto financeiro de hoje, a melhor posição investidora que existe é a de senhorio de AirBnB.
Em cidades como Amsterdão, Berlim, Barcelona e Lisboa esta segunda gentrificação, mais rápida e intensa que a anterior, tem suscitado intensos protestos por parte de quem habitava ou queria habitar os seus bairros antigos. Até que ponto estas manifestações surtirão efeito dependerá da disponibilidade dos governantes alterarem drasticamente as políticas de habitação, criando soluções residenciais que no actual contexto os mercados imobiliários são de todo incapazes de oferecer.
Depois de vós, nós: turistas e investidores
Enquanto os centros históricos representam ao fim e ao cabo uma pequena parte e inexpandível da área total das cidades, o número de turistas que os visita não pára de aumentar de ano para ano — ou seja, uma oferta fixa e escassa depara-se perante uma procura turística em rápido crescimento, paralela a uma procura residencial relativamente estável. Neste contexto, o valor das rendas turísticas tenderá inevitavelmente a ultrapassar o das rendas residenciais.
Entretanto, a globalização das transferências de capital vai permitir que os investidores em fuga de economias estagnadas (Brasil, Angola), de regimes políticos arbitrários (China, Rússia, Síria), ou de países onde a taxação é mais elevada (França), refugiem e rentabilizem a sua fortuna investindo-a em imóveis nas melhores localizações urbanas de países ocidentais estáveis. Portugal é um destino preferencial destes investidores, graças às generosas isenções fiscais e vistos dourados de residência que lhes oferece.
Quatro propostas e uma conclusão
Os governantes portugueses que pretendam mitigar os efeitos desta segunda gentrificação podem recorrer a diversos meios.
— Em primeiro lugar, reduzir o diferencial de ganhos obtidos entre o arrendamento turístico e o arrendamento residencial, revendo profundamente o regime jurídico do alojamento local (Decreto-Lei n.º 128/2014, de 29 de agosto) de modo a sujeitar esta categoria de estabelecimentos a regras de segurança, higiene e conforto tão exigentes quanto aquelas impostas aos empreendimentos hoteleiros e afins. Tal medida reduziria a margem de lucro do alojamento local, tornando-o mais próximo dos níveis de rentabilidade de hotéis e não tão vantajoso relativamente ao arrendamento residencial. O sector da hotelaria não se oporia a esse gesto.
— Em segundo lugar, os serviços de AirBnB em propriedade horizontal deveriam ser enquadrados num verdadeiro regime de “bread and breakfast”: ou seja, cingir-se à oferta de pernoita e pequeno-almoço numa casa habitada pelo proprietário, que zelará presencialmente para que os seus hóspedes cumpram as normas relativas à limpeza do espaço público e ao ruído de vizinhança. Fora destas condições, o arrendamento reiterado e de curta duração deveria ser autorizado apenas em imóveis de propriedade vertical, conformes a um regime de alojamento local mais exigente do que o actualmente em vigor.
— Em terceiro lugar, a percentagem de fogos de habitação social nos centros históricos, oferecida segundo rendas tabeladas, deveria aumentar significativamente. O congelamento de rendas em imóveis privados tem-se revelado uma medida contra-producente e em muitos casos injusta. Seria mais apropriado que a autarquia assumisse o papel de senhorio, em imóveis públicos. Seria também oportuno verificar se se encontram entre os milhares de prédios devolutos existentes em Lisboa casos de heranças vagas, comprovamente sem dono nem herdeiro conhecido, e que nesse caso devem reverter para a posse do Estado tal como previsto no Código Civil.
— Em quarto lugar, a titularidade de imóveis situados em território português somente deveria ser autorizada a pessoas singulares ou colectivas fiscalmente domiciliadas em Portugal, e que a essas mesmas personalidades jurídicas não fossem concedidos privilégios fiscais normalmente negados a cidadãos portugueses. Dessa forma se evitaria a aquisição de prédios para fins de mera engenharia financeira ou fiscal, os quais não raras vezes sem mantêm expectantes de um modo que prejudica a vivência das cidades.
Vista pelos olhos de um investidor imobiliário, qualquer gentrificação é um processo irresistível. Pelos olhos de quem habite ou deseje habitar um centro histórico, é uma arbitrariedade esmagadora. Ao olhar de quem prefere residir nos subúrbios anódinos, é um acontecimento sem importância. Mas para quem estime a cidade como a mais importante manifestação identitária de um país, esta segunda gentrificação é uma farsa cultural onde a cultura urbana de um país se transforma numa caricatura dela mesma, onde as ruas se transformam em décors e as comunidades em souvenirs.
8 de Outubro, 2016
* Pedro Bingre do Amaral (n. 1973) é docente do ensino superior, onde lecciona nas áreas científicas do ambiente e do ordenamento do território.
[i] O termo gentrification não tem sido habitualmente traduzido para língua portuguesa; apenas é costume transcrevê-lo como anglicismo: gentrificação. E é pena, porque dessa forma perde toda a carga semântica bem evidente no original: a gentry inglesa corresponde à fidalguia portuguesa. Se se dissesse que um bairro se encontra sob um processo de fidalguização, qualquer interlocutor português compreenderia de imediato o significado da expressão: a classe social que o ocupa está a ser substituída por outra com maior poder económico.
http://www.esquerda.net/dossier/segunda-gentrificacao-de-lisboa/44848