Movimento lança carta a pedir medidas urgentes pelo direito a morar em Lisboa
“É cada vez mais difícil morar em Lisboa”. Começa assim a carta aberta “Morar em Lisboa”, endereçada ao Governo, aos deputados, ao município e aos cidadãos, redigida, na semana passada, por um conjunto de instituições e indivíduos ligados ao meio académico, sobretudo arquitectos, geógrafos e sociólogos, e ao activismo social. Pedem a tomada de medidas urgentes para inverter o que apontam como a inequívoca intensificação na capital do processo de gentrificação – ou seja, a valorização imobiliária de uma área da cidade, forçando residentes com menor poder económico a sair para dar lugar a outros com maior poder.
“Nos últimos três/quatro anos, os preços da habitação para arrendamento aumentaram entre 13% e 36%, e para aquisição subiram até 46%, consoante as zonas da cidade”, denuncia o texto, que, entre os signatários colectivos, conta, entre outros, com a Academia Cidadã, a Associação de Moradores do Bairro Alto, a Associação das Colectividades do Concelho de Lisboa, a Associação dos Inquilinos Lisbonenses, a Associação Portuguesa para a Reabilitação Urbana e Defesa do Património, o Grupo de Estudos de Ordenamento do Território e Ambiente (GEOTA), a Associação Habita – pelo Direito à Habitação e à Cidade ou ainda a Associação do Património e da População de Alfama.
Os autores do documento, que até à tarde desta segunda-feira (23 de janeiro) havia sido subscrito por quase 2500 pessoas, denunciam um quadro sombrio: “uma drástica subida dos valores do arrendamento de habitação que tem levado à expulsão de população das áreas mais centrais da cidade, em conjunção com uma queda abrupta da oferta e com um aumento exponencial dos valores para aquisição de casa própria, tornaram o acesso à habitação em Lisboa privilégio de poucos e direito praticamente inacessível às famílias portuguesas”.
Nascido de sessões de reflexão, inicialmente dinamizadas pela Academia Cidadã, e que teve como momento chave uma “masterclass” sobre o tema ocorrida em abril de 2016, o texto considera “indispensável a adoção urgente de uma política nacional e municipal de habitação que favoreça e dinamize o arrendamento, público e privado, com direitos e deveres, com segurança e estabilidade”. “Entendemos que é necessária uma nova política de habitação e de ordenamento do território, uma Lei de Bases da Habitação, uma política fiscal diferenciadora dos vários usos da habitação”, dizem.
Entre as medidas prioritárias que, entendem, poderão contribuir para a alteração da actual escassez de casas para arrendar, os signatários pedem um incentivo da colocação no mercado de propriedades devolutas – “incluindo o património do Estado e dos Municípios” -, o estabelecimento de parcerias diversas com os sectores privado e social, a criação de mecanismos de controlo das rendas “através de uma política fiscal adequada”, tendo em conta a função social do arrendamento, e o dificultar e o impedimento dos despejos sem assegurar o realojamento dos residentes.
Preocupados com as consequências, cada vez mais agudas e interligadas, nos últimos anos, da revolução turística e da exuberante retoma do mercado imobiliário, os responsáveis pelo documento consideram “urgente lançar um outro paradigma de desenvolvimento de Lisboa como um território partilhado, socialmente diversificado, dando prioridade ao equilíbrio económico e social, à igualdade e coesão, ao acesso à habitação, à multiplicidade de usos, ao espaço público, à mobilidade, à conservação do património, à promoção da cultura e do desporto, à convivência cívica e à participação cidadã”. Algo que será possível, advogam, com o “colocar e manter na primeira linha da agenda política nacional o tema da habitação”.
A carta aponta como culpados maiores do processo de expulsão da cidade das classes menos abastadas a “pressão e especulação fundiária e imobiliária”, resultantes do súbito interesse turístico pela capital portuguesa. Mas destaca o que avalia como papel decisivo do Estado português no processo, “pelo desenho e uso de instrumentos legais e financeiros destinados ao apoio do investimento privado no mercado imobiliário, em particular a ‘Lei do Arrendamento’, a ‘Lei dos Residentes Não Habituais’ e dos ‘Visa Gold’”.
Em conjunto, denunciam os autores da missiva, as três medidas legislativas, da autoria do anterior Governo, têm contribuído para a “intensificação da especulação imobiliária”, o aumentado do poder dos senhorios, o atualizar excessivo das rendas e o facilitar os despejos, “levando à expulsão de muitos habitantes e ao encerramento de atividades económicas, sociais e culturais”, bem como o beneficiar com vantagens fiscais dos cidadãos estrangeiros mais endinheirados.
O que está a ter óbvias consequências, avisam. “A nível da cidade de Lisboa, a manter-se a oferta insuficiente e a excessiva subida nos preços na habitação – exponenciada no centro histórico e a alastrar por toda a cidade -, continuaremos a assistir à perda de população, ao despovoamento, ao decréscimo dos jovens, ao fenecimento de múltiplas comunidades que dão cor e vida à cidade”, avisam. Apontando o dedo à “prática contraditória” do Governo e da Câmara Municipal de Lisboa, os signatários dizem que “a atual política habitacional está a aprofundar as desigualdades socio-territoriais, a expulsar um grande número de famílias para as periferias e a tornar o acesso à habitação nas áreas centrais das cidades um privilégio dos mais ricos, a gerar desequilíbrios urbanos e a potenciar conflitos sociais”.
Ouvida pelo Corvo, Leonor Duarte, um dos membros da Academia Cidadã, assegura que o documento reflete uma “preocupação crescente de muita gente com o que se está a passar”. “Mesmo muitas pessoas que, há seis meses, nos diziam que, se calhar, estávamos a exagerar, argumentando que as mudanças são parte da vida de uma cidade, estão agora a ficar apreensivas e juntam-se a nós”, afirma. A ativista social diz que existe ainda gente que não assinou a carta, por não se rever em determinadas partes da mesma, mas que concorda com o seu tom geral.
Leonor Duarte faz questão de sublinhar que esta iniciativa não contesta a importância do turismo para a economia da cidade e do país, querendo antes alertar para a necessidade premente de o enquadrar com o direito básico à habitação. “Temos que reflectir sobre o tipo de transformação em curso em Lisboa e para quem está a ela ser benéfica. Desejamos uma cidade onde haja investimento, sem dúvida, mas que seja também para viver. Queremos que o turismo perdure em Lisboa, mas que tenha bases para continuar e não esteja a criar algo que não nos parece nada saudável, que é uma cidade sem os seus habitantes”, afirma activista, apontando o bom exemplo das autoridades de Berlim, que têm tomado medidas para contrariar o peso excessivo do alojamento turístico.
Mais informações: https://moraremlisboa.org/
Texto: Samuel Alemão