O aumento do preço da habitação em Lisboa é, sem exagero, alarmante, e finalmente muita gente começa a falar sobre o assunto. Notícias como a subida abrupta no ranking das cidades mais caras do mundo devido ao preço do arrendamento, ou que em três anos o preço da habitação em Lisboa aumentou na ordem dos 22%, e a escassez de casas para arrendar são um problema sério. Tem-se falado do turismo e do alojamento local como as razões para o que está a acontecer. Mas reduzir o debate apenas a essas questões não nos leva muito longe.
Por Rita Silva, 24 de Junho de 2016
É preciso pensar, em primeiro lugar, como viemos aqui parar, onde estão as responsabilidades e, a partir daí, que respostas poderemos desenvolver. Este texto pretende ser um contributo.
A primeira causa para o que está a acontecer foi a liberalização do mercado de arrendamento, leia-se, o aumento das rendas antigas e a abertura de vias verdes para o despejo, através do anúncio de obras (sem necessidade de reintegrar o inquilino), precarização dos contratos e a criação dos balcão nacional do arrendamento (que só serve para despejos) retirando-o da alçada dos tribunais numa clara violação das garantias de protecção que os inquilinos têm de ter. Este processo desequilibrou drasticamente a balança para o lado dos proprietários. Esta foi uma medida querida da troika – alta representante do capital financeiro – escrita no memorando, que já antevia a nova área de negócio que aí vinha: reabilitação, arrendamento, mercado de luxo, turismo. É que o arrendamento com direitos dominava os centros das cidades e não podia continuar assim para os novos projectos que se anteviam, que necessitavam de despejar sem constrangimentos de maior.
É preciso que se desminta, desde já, mais um mito urbano: que o abandono da cidade e a degradação durante anos, se devia à anterior lei das rendas. Não, o abandono dos centros das nossas cidades deveu-se a um modelo, apoiado e subsidiado por uma política do Estado, compra de casa nova, crédito à habitação e expansão das cidades, que fez com que todo o investimento fosse direccionado para aí. Este modelo, como sabemos, esgotou-se, e os mesmos interesses, viraram-se agora para a reabilitação e para o mercado de luxo e das altas rentabilidades. É por isso que a maior parte dos edifícios que estão (e estiveram) vazios e degradados no centro da cidade são e eram de fundos de investimento imobiliário e promotores. Estavam apenas à espera do momento.
Portugal tem vindo a desenvolver nos últimos anos uma espécie de offshore imobiliário, quer seja os Vistos Gold, quer seja o estatuto de residência não habitual para estrangeiros, que lhes dá a possibilidade de não pagar IRS, em troca de cerca de 180 dias de permanência no país. O impacto destas medidas é elevado, uma vez que há milhares, sobretudo reformados, a fixar residência em Portugal de forma a deixar de pagar impostos. A compra de habitação e a sua rentabilização sobretudo no arrendamento temporário estão a fazer caminho. Os fundos de investimento imobiliário e outros, também continuam sua longa tradição de não pagar impostos1.
A promoção do alojamento local, através de um sistema fiscal bastante mais vantajoso do que o arrendamento, em que só se pagam impostos sobre 15% dos rendimentos, foi a cereja no topo do bolo. Mas o alojamento local não é todo o mesmo, há os pequenos proprietários que organizam este negócio com uma casa que têm, para compensar a perda de trabalho e de rendimentos que a austeridade trouxe, mas também os fundos de investimento imobiliário, que reabilitam e vendem para o segmento de luxo e gerem modalidades de arrendamento temporário de muitos apartamentos, e usufruem dos mesmos benefícios fiscais. Desta forma, o AL está a subtrair milhares de casas ao arrendamento.
A Autarquia abdica de todas as suas funções de regulação, equiparou o alojamento local a habitação e por isso o licenciamento é o mesmo. Manuel Salgado tratou de liberalizar também os planos de ordenamento, é tudo uma questão de mercado, segundo ele, a regulação só atrapalha. Entretanto, fez dezenas de planos de pormenor à medida exacta de proprietários e promotores, liberalizou o PDM, o Plano de Salvaguarda da Baixa, etc.
A CML anuncia, no entanto, uma reacção – Lisboa Para Todos – um rótulo eficaz, quiçá o mote para a campanha eleitoral que se aproxima: este programa irá colocar através de uma espécie de parceria pública privada, cujos contornos não conhecemos na totalidade, entre 5 a 7.000 casas no mercado para arrendamento (menos de metade do que as que estão hoje no alojamento local). Estas casas com renda acessível (que ainda não sabemos o que é) será sorteada para famílias com rendimentos entre os 7500 e os 40.000 euros por ano. Podemos retirar daqui pelo menos duas conclusões: a primeira é que a autarquia, apesar de celebrar o que se passa na cidade, admite que o mercado de habitação se tornou inacessível à esmagadora maioria da população, pois se é necessário criar habitação acessível para famílias até aos 40.000 euros por ano, é admitir que cerca de 97% da população não encontra habitação acessível. Por outro lado, ao deixar de lado, aquelas que têm rendimentos anuais menores que 7500 euros, está a excluir uma grande faixa de população, pois que, de acordo com o ministério das finanças a percentagem que está abaixo disso é muito elevada. Mas significa também um preconceito, que afinal Lisboa não é para todos(e todas!). Este programa não será para muitas famílias precárias, do salário mínimo, ou abaixo disso, dos part-times, ou dos desempregados; significa que essas pessoas são para as listas de espera (e sem resposta) dos bairros sociais, o local dos pobres, ou inevitavelmente expulsas da cidade. Como o mercado está como está, a escassa política social redirecciona-se para a chamada ‘classe média’ e acaba de vez com qualquer política para os sectores mais empobrecidos da população que há muito esperam e desesperam.
Pode haver outras soluções, diversas, de âmbito mais estrutural, que não têm de passar pela discriminação dos pobres e por PPPs se o poder público assumir as suas funções.
Em primeiro lugar, alterar a lei do arrendamento urbano. Repor a garantia de protecção do inquilino perante o despejo e parar os despejos por obras.
É preciso acabar com o offshore imobiliário para estrangeiros, por um lado, e por outro, distinguir grandes de pequenos proprietários. São os grandes proprietários que têm a capacidade de mandar na cidade, movimentam interesses, mexem nos preços, não pagam impostos. Esta situação tem de ser invertida. Se os grandes proprietários começarem a ter tributação justa, na proporção dos ganhos que fazem, teremos mais recursos para uma política pública de habitação e maior capacidade de regulação.
Relativamente ao alojamento local, distinguindo grandes e pequenos pequenos proprietários, é necessário aproximar os sistemas fiscais do arrendamento permanente e do AL de forma a não se preferir o segundo por esse motivo. Assim como é fundamental a distinção entre o que é habitação e o que é AL, a sua monitorização e regulação, através de licenças, de forma a não desequilibrar a oferta de habitação na cidade. No momento actual uma moratória a mais AL e Hotéis era o mínimo para de alguma forma travar o processo e começar a criar outras medidas.
Criar mecanismos de controlo do arrendamento, como tectos máximos para o arrendamento e limites à subida quando há mudança do contrato são outras possibilidades. Muitas cidades assim o fizeram. Por exemplo, Nova Iorque, no seu tempo cosmopolita, de diversidade social e cultural que, exactamente pelo fim do controlo do arrendamento e da gentrificação, perdeu muito dessa riqueza e hoje deixou de ser a cidade interessante que foi.
Seria muito útil que Câmara e Estado central parassem o processo de alienação de habitação que desenvolveram nos últimos anos. A política de arrendamento público deve ser promovida, inclusivamente com a possibilidade de requisição de habitação vazia para integrar bolsas de arrendamento. Assim como a criação de mecanismos de garantia de percentagens de habitação acessível para arrendamento (para todos e todas a sério) nos planos de ordenamento de território, novas urbanizações e planos de regeneração urbana, de acordo com as necessidades reais (da mesma forma como se define os espaços verdes e os equipamentos, também a habitação social deveria estar estabelecida, sem ser confinada aos guetos.
Estas são apenas algumas propostas de reformas e regulação, que permitiriam um reequilíbrio perante a ditadura dos mercados, que nos retiraram o direito à cidade, não só de a habitar, mas também de nela participar verdadeiramente. É o mercado que hoje tem a passadeira vermelha estendida. Ter a passadeira estendida aos direitos, são outros 500.
Rita Silva
1Apesar de finalmente se ter acabado com a isenção de IMI e IMT dos FII. Estes encontraram o típico alçapão na lei, provavelmente feito à medida, para continuar a não pagar. Ver Artigo 9º, 1 e) do código IMI
http://www.habita.info/2016/06/mas-afinal-o-que-se-passa-com-habitacao.html