O direito à habitação não mora aqui

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O geógrafo do IGOT-UL e activista do movimento Morar em Lisboa, onde se integra a APPA, entre outras associações, reconhece que a habitação não é hoje vista como um direito do Estado social mas antes «como um mero activo financeiro que serve a reprodução de capital através da especulação imobiliária e produção de mais-valias».

A freguesia de Santa Maria Maior, em Lisboa, agrega os típicos bairros de Alfama, Castelo, Baixa-Chiado e Mouraria, onde a expulsão de moradores mais se tem feito notar. De acordo com as estatísticas, entre 2013 e 2017 foram cerca de duas mil pessoas, o que dá mais de um habitante por dia.

Partimos do Largo das Portas do Sol, convertido em parque de estacionamento de tuk tuks, para as labirínticas ruas de Alfama e de imediato tropeçamos nas mudanças produzidas pela especulação imobiliária e por um turismo desregulado.

Pelo caminho vamos registando as alterações e as denúncias que os habitantes deixam pelo bairro, não sem sermos olhados de soslaio. Afinal de contas, são muitos milhares os que diariamente entram em Alfama, grande parte deles em visitas guiadas, para observarem a resistente tipicidade deste bairro alfacinha.

Descemos ao Museu do Fado, ponto de encontro com Lurdes Pinheiro, presidente da Associação do Património e da População de Alfama (APPA), onde ficamos a observar os milhares de turistas que vão preenchendo o Largo do Chafariz de Dentro. Daí partem em direcção ao miolo do bairro com a ajuda de guias identificados com chapéus de chuva, bandeiras ou outras sinalécticas.

Numa altura em que muitos dos seus habitantes já foram despejados ou têm ordem de expulsão e vários espaços apresentam fachadas e menus em inglês, os guias turísticos mantêm um discurso voltado para a vivência típica de Alfama, assente no fado e na sardinha assada, que se come a cada esquina.

«Alfama sempre teve pessoas a visitá-la mas não havia este fenómeno de os moradores serem expulsos das suas casas por causa do alojamento local. Por isso, hoje, as pessoas reagem mal ao turismo», explica Lurdes Pinheiro.

A responsável da APPA afirma que há ruas em que não há um único morador que não tenha uma carta de expulsão e que, apesar de o bairro de Alfama sempre ter estado na mira da especulação imobiliária, a situação atingiu agora um novo patamar.

«A APPA surgiu em 1987 para chamar a atenção da Câmara Municipal de Lisboa (CML) para a necessidade de reabilitação do bairro, com o mote “Alfama, recuperação ou morte”». E foi com a luta da associação junto dos moradores que a CML tomou medidas para formar gabinetes técnicos locais e instrumentos para a reabilitação do bairro», descreve.

Mas o processo «começou a andar para trás desde que Santana Lopes ganhou a presidência da Câmara». «Foi um retrocesso para a cidade toda», acrescenta, frisando de seguida que o Município foi o «grande mentor» do realojamento de pessoas fora do bairro, designadamente nos bairros de Chelas, na zona Oriental de Lisboa. Os moradores nunca regressaram para recuperar as casas e, admite Lurdes Pinheiro, «persiste uma mágoa muito forte nas pessoas».

A extinção de freguesias, iniciada na capital pelo então presidente da Câmara, António Costa – que a fixou no programa eleitoral de 2009 como uma prioridade «basilar», e estabelecida a nível nacional pelo governo de Passos e Portas, em 2012, foi outro marco negativo na vida das populações.

«Dantes, os gabinetes não realojavam ninguém sem falar primeiro com as juntas de freguesia e procurava-se sempre que as pessoas fossem realojadas dentro do bairro. Mas depois isso começou a perder-se: foi a extinção de freguesias, a crise económica, começaram a fechar-se serviços públicos aqui no bairro, a actividade que existia em Alfama acabou porque eram actividades económicas ligadas à alfândega e aos despachantes, fecharam escolas, esquadras e farmácias», descreve.

Luta de classes no espaço urbano

A responsabilidade de Passos e Portas não fica por aqui, recorda Luís Mendes, geógrafo do Instituto de Geografia e Ordenamento do Território da Universidade de Lisboa (IGOT-UL). O governo anterior «deu um forte impulso à gentrificação» já que, «em pleno período de crise económica e de forte austeridade, e na necessidade urgente de atracção de investimento estrangeiro, promoveu leis que são responsáveis pelo processo».

Sublinha que o Novo Regime de Arrendamento Urbano (NRAU), imposto pela troika e subordinado aos interesses da propriedade, veio liberalizar ainda mais o arrendamento, aumentar o poder dos senhorios, inflacionar o valor das rendas e facilitar os despejos, levando à expulsão de muitos habitantes e ao encerramento de actividades económicas, sociais e culturais, como o comércio tradicional, as associações e as colectividades.

«Falando de uma forma simplificada e genérica: entram os ricos e saem os mais pobres e vulneráveis destes bairros populares do centro», aclara Luís Mendes, reconhecendo que o fenómeno se começa a alastrar a zonas mais periféricas como Areeiro, Carnide, Benfica e até mesmo à primeira coroa suburbana de Lisboa, como Algés, Almada e Barreiro.

A gentrificação, salienta, «é o processo que melhor ilustra as mudanças urbanas e recomposições residenciais, para além de que materializa a luta de classes no espaço urbano contemporâneo, porque esta substituição social faz-se ao nível da classe, numa dada comunidade».

O termo foi cunhado pela primeira vez em 1964 pela socióloga Ruth Glass, que estava a estudar a mobilidade residencial das classes médias nos bairros da classe trabalhadora em Londres. Mas, explica Luís Mendes, «podemos recuar até meados do século XIX à Paris de Haussman, época contemporânea ao nascimento e juventude de Marx, para compreender o processo».

O geógrafo do IGOT-UL e activista do movimento Morar em Lisboa, onde se integra a APPA, entre outras associações, reconhece que a habitação não é hoje vista como um direito do Estado social mas antes «como um mero activo financeiro que serve a reprodução de capital através da especulação imobiliária e produção de mais-valias».

A afirmação faz eco em Alfama. No passeio pelo bairro percebemos que o problema da habitação domina as conversas entre os moradores, seja na rua, no café ou na mercearia. A «carta» é a palavra maldita de que toda a gente fala e que entrou no correio de muitos desde que foi promulgado o NRAU, em 2012, vulgarmente designado por «Lei Cristas» ou «Lei dos Despejos».

Mudam-se os tempos e os clientes

Manuela Farias, dona da única mercearia tradicional que ainda se encontra no bairro – «a única que tem umas coisinhas de jeito», dizem os clientes com quem nos cruzamos –, está entre os que receberam ordem para sair.

«Esta mercearia existe aqui desde 1954. O meu marido esteve cá 50 anos e, desde que ele morreu, há sete anos, tenho estado sempre sozinha», conta.

Voltando à famigerada carta, Manuela Farias contextualiza o momento. «Ela surge porque na altura em que a Câmara tentou reabilitar o bairro tomou posse administrativa de alguns prédios, inclusive deste. Disse que íamos sair por dois ou três anos para ser reabilitado, mas nunca fizeram nada. Isto esteve alguns 14 anos embargado, agora foi restituído ao senhorio e o senhorio vendeu. Quem comprou alega que tem que fazer obras profundas porque isto está muito degradado e eu tenho que sair».

Confessa que entregou a situação a um advogado, de resto não sabe o que o futuro lhe reserva. A única certeza que tem é que não está fácil arranjar espaço, «nem para casas nem para lojas». As alterações demográficas vividas em Alfama permitem a Manuela continuar a vender. Admite que «não faz o que fazia noutros tempos», mas quem fica hospedado nos alojamentos locais espalhados pelo bairro «sempre precisa de leite, pão e manteiga ou fruta». Porém, num bairro onde a proximidade e a vizinhança davam sentido aos dias, reside agora a mágoa de «a gente não saber quem serve».

Numa aparente resignação reconhece que os clientes são diferentes porque, se se mudam os tempos, o mesmo ocorre com as vontades. Não nega, no entanto, que as pessoas estão «cansadas» do turismo. «Isto já nem é para os moradores, nem para nós [comerciantes], algumas das coisas boas vão-se embora», remata.

Turismo: cara ou coroa?

Apesar de o turismo urbano servir de motor para a recuperação do edificado e para a criação de emprego, Luís Mendes esclarece que falta uma estratégia de planeamento e avaliação do seu impacto, a par de um processo de regulação.

Admite que não se respeitam, «também porque não se conhecem», as capacidades de carga turística dos vários bairros do Centro Histórico, motivo pelo qual se desencadeia a sobrelotação de equipamentos, infra-estruturas e transportes.

No caso do comércio tradicional, afirma que a sua expulsão dos bairros representa uma «carta de intimação» para os restantes habitantes. «As pessoas mais pobres e com baixa mobilidade deixam de conseguir abastecer-se no dia-a-dia, o que acaba por ser um convite para saírem», acrescentando que esta é uma forma de desalojamento indirecto «tão ou mais grave que a expulsão propriamente dita».

O comércio tradicional desaparece para dar origem a lojas gourmet e outras direccionadas para os estrangeiros que se alimentam dos bairros históricos.

Apesar de o boom turístico «dar vida nova e gerar novos negócios, também está a aumentar as tensões latentes e a gerar novos problemas e desafios urbanos e fiscais», alerta o geógrafo. Os prédios são reabilitados mas as rendas aumentam exponencialmente, multiplicando os desalojamentos residenciais e comerciais.

Por outro lado, é graças ao turismo que muitos portugueses são lançados no negócio de arrendamento de quartos e muitos jovens desempregados dão os primeiros passos no mercado de trabalho, embora esse «mercado» não esteja disponível para lhes retribuir empregos com direitos e salários dignos.

«Assistimos a uma gentrificação turística, mediante a transformação dos bairros populares e históricos da cidade em locais de consumo e turismo pela expansão da função de recreação, lazer ou alojamento turístico», realça Mendes.

Na visita a Alfama percebemos que falar do turismo representa um «pau de dois bicos». Apesar dos muitos descontentes com a descaracterização provocada pelos constantes despejos de moradores e lojistas, o aumento das rendas, a escassez de transportes públicos ou a sobrelotação no Centro Histórico, há outros que aproveitam para rentabilizar as suas casas no alojamento local.

Porque, na ausência de políticas de habitação asseguradas pelo Estado, são os proprietários que regulam o dito mercado, atesta Romão Lavadinho, da Associação de Inquilinos de Lisboa (AIL), numa entrevista ao AbrilAbril.

O Estado tem que intervir

«Logo após o 25 de Abril, a questão que se colocava sempre era que as novas legislações deveriam dinamizar o mercado do arrendamento, mas nenhuma fez isso», denuncia. A lacuna de anos inviabiliza o cumprimento da Constituição da República Portuguesa (CRP) que, no seu artigo n.º 65, estabelece que todas as famílias têm direito a uma habitação condigna de acordo com os seus rendimentos.

Para ser assim, o dirigente da AIL defende que «o Estado tinha que intervir». Até porque, alerta, a precariedade na habitação é «tão ou mais complexa» do que a precariedade no emprego uma vez que as pessoas estão a ser despejadas com base na lei.

Os censos de 2011 revelaram a existência de 735 mil casas devolutas a nível nacional. Só em Lisboa eram 50 mil que «deveriam estar no mercado de arrendamento», frisa Lavadinho. Para inverter o cenário, uma das propostas da AIL é aumentar o IMI dos fogos devolutos. «No primeiro ano aumentar três vezes, no segundo nove e assim sucessivamente até o proprietário perceber que não pode ter a casa livre e tem que a colocar no mercado de arrendamento».

A associação reivindica ainda que o Estado coloque casas públicas no mercado de arrendamento, em número suficiente, de modo a assegurar o direito à habitação. A APPA também, mas a exigência desta é voltada sobretudo para a Câmara de Lisboa.

Enquanto travamos conversa pelas ruas de Alfama, Lurdes Pinheiro, que foi 12 anos presidente da Junta de Freguesia de Santo Estêvão, dá a conhecer aos moradores, que trata pelo nome, um abaixo-assinado promovido pela APPA a exigir à autarquia a construção de habitações no Largo de São Miguel, onde o Município liderado por Fernando Medina previa construir o Museu Judaico de Lisboa.

O facto de a construção estar suspensa por ordem do Tribunal Central Administrativo do Sul é uma conquista da associação, dos moradores, comerciantes e amigos de Alfama que, em Setembro de 2017, apresentaram uma providência cautelar.

Lurdes Pinheiro (à esquerda) na distribuição do abaixo-assinado à população de Alfama

No texto, inicialmente chumbado pelo Tribunal Administrativo de Círculo de Lisboa, denotam que o equilíbrio urbanístico do largo, um dos mais característicos de Alfama, ficaria ameaçado com o museu que a Câmara previa construir com o apoio da fundação do dono da Altice (Fundação Lina e Patrick Drahi) e da Associação da Rede de Judiarias de Portugal.

A presidente da APPA atesta que a luta não é contra o museu, reconhecendo que a presença de judeus no bairro faz parte da história de Alfama. A luta, insiste, deve-se à necessidade de pôr termo à expulsão de moradores e evitar maior pressão naquele território, sublinhando que a autarquia tem à disposição outros espaços para a instalação do equipamento.

A financeirização do imobiliário

Apesar de a liberalização do arrendamento ter conhecido um forte impulso com o NRAU, a «viragem neoliberal», nas palavras de Luís Mendes, surgiu com a criação das sociedades de reabilitação urbana (SRU), em 2004.

Desde então, recorda, foram aprovados pacotes de leis que foram sucessivamente defendendo «uma visão pró-mercado» no que respeita à habitação, favorecendo a iniciativa privada, as parcerias público-privado e a competitividade no sector.

Entre as medidas que mais contribuíram para a especulação imobiliária no nosso país encontra-se, desde 2009, o regime fiscal para residentes não habituais e para os fundos de investimento imobiliário, assim como o programa dos «Golden Visa» ou Autorização de Residência para Actividade de Investimento.

Em ambos os casos, os cidadãos estrangeiros são beneficiados com grandes reduções e isenções de impostos, introduzindo desigualdade entre estes e os residentes permanentes, portugueses ou estrangeiros, que não têm quaisquer benefícios fiscais.

Trata-se, ilustra Luís Mendes, de uma «elite capitalista transnacional» que é atraída pelo regime fiscal dos Residentes Não Habituais, pela lei dos Vistos Gold (Golden Visa) e pela política de isenção fiscal de que beneficiaram os Fundos de Investimento Imobiliário. «Estes três programas do governo transacto [PSD e CDS-PP] incentivaram a acumulação de capital imobiliário à custa da financeirização progressiva do parque habitacional lisboeta», frisa.

Em 2014 surge o regime excepcional e temporário da reabilitação urbana com o propósito de agilizar e simplificar os procedimentos de criação de áreas de reabilitação urbana e de controlo prévio das operações urbanísticas.

A par destes, o geógrafo relembra a liberalização dos usos do solo operada pela Câmara da capital, em 2012, durante a revisão do Plano Director Municipal de Lisboa. Com toda esta dinâmica, prossegue, «actualmente podemos assistir a um grande dinamismo na reabilitação de edifícios no centro histórico da cidade, ao mesmo tempo desalojando a população mais pobre aí residente».

AL: nova regulamentação

Após a análise efectuada sobre as reais causas desta gentrificação, que considera «madura» e com «contornos mais agressivos», Luís Mendes observa o turismo e a expansão do alojamento local (AL) como «factores secundários e conjunturais».

Nos últimos seis anos, em Lisboa, os preços da habitação para arrendamento aumentaram entre 13% e 36%, e para aquisição subiram até 46%, consoante as zonas da cidade, estimando-se uma taxa de esforço mensal com a habitação entre 40% e 60% do rendimento familiar, quando a recomendada para acautelar o cumprimento das obrigações ronda os 30%.

No dia 18 de Julho, o Parlamento aprovou alterações à lei do alojamento local que, além de a tornarem mais restritiva, permitem proteger melhor a habitação permanente. A regulação fica agora dependente das autarquias que passam a poder definir quotas nas áreas abrangidas e estabelecer limites ao número de alojamentos locais nas chamadas zonas de contenção, de modo a impedir que deixe de haver casas destinadas a habitação permanente.

E dá também poder aos condomínios. Desde que representem mais de metade do prédio, os vizinhos podem tentar impedir o alojamento local desde que provem a «prática reiterada e comprovada de actos  que perturbem a normal utilização do prédio, bem como causem incómodo e afectem o descanso dos condóminos». Tentar, porque a decisão final cabe à autarquia.

Os condóminos passam a poder aprovar ainda o «pagamento de uma contribuição adicional correspondente às despesas decorrentes da utilização acrescida das partes comuns, com um limite de 30% do valor anual da quota respectiva».

Estas e outras alterações introduzidas pela nova lei têm vindo a ser contestadas pelas associações representativas do sector e também pelo presidente da Câmara de Lisboa, Fernando Medina, que admite ser fácil contornar o limite de sete unidades de alojamento local por pessoa singular ou empresa, como prevê o diploma.

Uma boa parte da ocupação do alojamento turístico de edifícios de uso residencial não implicou despejo e desalojamento directo de moradores por se encontrarem devolutos ou em avançado estado de degradação.

No entanto, caso o número de unidades de alojamento local continue a aumentar em Lisboa, a cidade «pode potencialmente sofrer um êxodo de suburbanização a uma escala semelhante à experienciada em muitos cidades americanas e em algumas europeias». A conclusão é de um estudo apresentado no congresso da Associação Portuguesa de Desenvolvimento Regional, no início de Julho.

De acordo com a investigação, entre 2010 e 2017 o número de estabelecimentos de alojamento local em Lisboa passou de 259 para 9833.

Uma política de cidade. Como é lá fora?

Os exemplos vindos da Europa colocam em evidência a falta de uma política nacional de habitação capaz de mitigar os danos de uma especulação imobiliária  voraz e promover o mercado social de arrendamento.

«O Estado, tanto a nível central como local, afigura-se como um poderoso agente de produção de cidade por via da política fiscal e da política de oferta de habitação pública, conseguindo, por esta via, regular o mercado», prossegue Luís Mendes.

No plano internacional, regista que o sistema mais utilizado mundialmente é o controlo directo das rendas de forma a garantir qualidade e assegurar o acesso à habitação. A regulamentação abrangente do arrendamento é comum em países da Commonwealth e da União Europeia, incluindo o Canadá, a Alemanha, a Irlanda, o Chipre e a Suécia, e ainda nalguns estados dos EUA.

Um sistema de regulação do arrendamento, descreve Luís Mendes, envolve controlo de preços, «os chamados “tectos de rendas” como se pratica em Berlim», limites sobre o valor das rendas que o senhorio pode cobrar e as normas pelas quais um senhorio pode rescindir um contrato de arrendamento. «O equivalente a despedimento sem justa causa no mundo do trabalho, facilitando o controlo, duração e a estabilização dos contratos», acrescenta.

Estão contempladas ainda obrigações do senhorio e do inquilino em relação à manutenção adequada da propriedade, com distribuição equitativa de direitos, deveres e responsabilidades que confiram confiança ao contrato de arrendamento, a par de um sistema de supervisão e fiscalização por um regulador independente.

O objectivo clássico, diz o geógrafo, «é limitar o valor das rendas que resultaria do mercado, pois a persistência de desigualdades de poder de negociação entre senhorios e arrendatários produz uma escalada insustentável dos preços e valores das rendas, sem qualquer equilíbrio estável por parte do mercado».

Diferentes níveis de intervenção estatal

Um relatório do Parlamento Europeu segmenta as políticas de habitação dos Estados-membros em quatro grupos, de acordo com cada nível de intervenção estatal.

No pelotão da frente surgem a Holanda, a Suécia e o Reino Unido, com os respectivos governos a investirem mais de 3% do PIB. Seguem-se a Áustria, Dinamarca, França e Alemanha, onde a despesa pública referente a políticas relativas à habitação está geralmente compreendida entre 1 e 2% do PIB.

No grupo de países constituído pela Irlanda, Itália, Bélgica, Finlândia e Luxemburgo a despesa pública está limitada a cerca de 1% do PIB, identificando-se «um grande número de sectores de alojamento ocupados pelos respectivos proprietários e um sector de alojamentos de aluguer de carácter social relativamente reduzido».

Com uma despesa pública em políticas de habitação abaixo de 1% do PIB surgem Portugal, Espanha e a Grécia. O relatório indica que os três países «têm um sector particularmente vasto de alojamento ocupado pelos respectivos proprietários, ao passo que o número de alojamentos de aluguer de carácter social é mínimo e (até há pouco tempo) o sector de alojamento de aluguer de modesta qualidade de carácter privado está em declínio».

A coesão também passa pela habitação

Numa altura em que os governantes se esforçam por colocar a coesão territorial no discurso, convém lembrar que a consagração do direito à habitação é uma das alavancas para conseguir essa harmonia.

Uma análise do Instituto da Habitação e da Reabilitação Urbana (IHRU) às despesas do Orçamento Geral do Estado com a habitação, no período entre 1987 e 2011, revela que, em vez de apostarem no mercado de arrendamento, as políticas do Estado têm dado preferência ao apoio a empréstimos bancários para construção ou aquisição de habitação.

«É caso para dizer que estamos a viver hoje ciclicamente este processo de destruição criativa da paisagem urbana promovido pelo capital imobiliário, cujo objectivo é o de gerar constantes oportunidades de negócio imobiliário e de reprodução do capital», defende Luís Mendes.

Na contemporaneidade, prossegue, «o seu motor continua a ser a luta de classes entre uma classe dominante – promotores, investidores e especuladores imobiliários – que deseja apropriar-se do espaço urbano e reproduzir os seus interesses de classe, em oposição a uma classe dominada – os mais pobres e vulneráveis, idosos, imigrantes, classe trabalhadora e popular –, que sofre da acumulação por espoliação gerada pela primeira».

As pessoas não têm para onde ir

Em Alfama, a tentativa de tomar posse das casas por parte dos novos proprietários é tida por quem lhes resiste como «bullying imobiliário». Entre as vítimas desta nova forma de violência está Eduardo Correia, com 82 anos de idade. Desde que recebeu a ordem de expulsão tem enfrentado pressões por parte da Associação Lisbonense de Proprietários (ALP), que passou a gerir o edifício.

«A minha mulher nasceu lá há 81 anos e eu entrei na casa quando casei, em 1958. Quando fui para aquela casa, as habitações em Alfama não tinham luz nem água, não tinham nada. Hoje têm porque nalguns casos foram os senhorios que fizeram, noutros foram os inquilinos, como é o meu caso. Recuperei a casa até esta altura», esclarece.

O sentimento de revolta mistura-se com o de traição. Apesar da boa relação que, diz, «sempre teve» com a antiga senhoria, afirma que esta o enganou. «Um dia veio à nossa casa e disse que precisávamos de fazer um ajustamento porque a renda era muito barata e que os contratos de arrendamento anteriores a 1990 tinham que ser revistos. A minha mulher, como titular do contrato, disse-lhe: “Está bem.” Pagávamos 30 euros e dissemos-lhe que não podíamos pagar mais do que 70 euros. A senhoria concordou e disse que iríamos receber uma carta a justificar o aumento da renda mas que lhe não déssemos importância».

«Sabe o que dizia a carta?», prossegue. «Era o arrendamento moderno, por cinco anos e ao fim desse período: renda livre e rua. Tínhamos 30 dias para responder. A minha mulher ainda falou com a senhoria, mas ela respondeu: “Esteja descansada que ninguém a põe na rua”.»

A senhoria acabou por vender o prédio e, em Agosto de 2017, Eduardo e a mulher, Natália Correia, receberam uma carta a propor um contrato anual com um valor mensal de 450 euros ou a saída até 1 de Agosto deste ano.

«Agora estamos mais calmos mas na altura foi um problema: já viu uma pessoa com 82 anos, julgando que ia passar o resto da vida sossegado», critica. «Receber esta carta mexe com uma pessoa, mexe com qualquer pessoa. Não temos para onde ir», admite.

Conta que depois de vender o prédio a antiga senhoria deixou de atender o telefone. Desde então, tem contado com o apoio jurídico que a Junta de Freguesia de Santa Maria Maior passou a prestar aos moradores do bairro, através do qual ganhou forças para resistir ao bullying.

Entretanto, o diploma que suspende temporariamente o despejo de pessoas com mais de 65 anos ou com elevado grau de deficiência, que residam no mesmo locado há mais de 15 anos, vem dar novo fôlego à luta dos inquilinos. Vigente por um período de nove meses, a medida duramente criticada pela ALP estará em vigor até que seja aprovada a alteração à lei do arrendamento.

«Está tudo ao contrário»

Em 2012, a Câmara de Lisboa aprovou a extinção da Empresa Pública de Urbanização de Lisboa (EPUL), com os votos favoráveis da maioria socialista, do PSD e do CDS-PP, e com o voto contra do PCP.

António Costa, então presidente da autarquia, justificou a decisão como sendo a «mais acertada para proteger o vasto património da cidade de Lisboa, para garantir os direitos dos credores e salvaguardar o melhor possível os direitos dos trabalhadores».

Volvido este tempo, a argumentação está longe de fazer sintonia com a realidade. Luís Sequeira, que presidiu à empresa constituída em 1971 durante quatro anos, admite que não se tratava de uma mera entidade municipal. «Assentava em duas prioridades: a habitação social, que por outro lado funcionava quase como um regulador dos preços do mercado, e habitação para jovens».

«Se reparar, depois do 25 de Abril até aos nossos dias, os jovens praticamente não conseguem ter casas para morar na cidade», acusa.

A reabilitação urbana foi outro vector fundamental da actividade da empresa. Depois da extinção da EPUL, constata Luís Sequeira, «os preços da recuperação das habitações antigas subiu muito porque foi entregue a privados».

Admite que a empresa tinha um papel «estruturante» e «regulador», com a preocupação de ir ao encontro das necessidades da população porque, aclara, «isto está tudo ao contrário». «As pessoas devem morar na cidade e o trabalho deve ser fora de portas», constata.

Entre outras consequências, Luís Sequeira reconhece que a extinção impulsionou a liberalização do mercado. Passados estes anos, afirma que «falta à Câmara de Lisboa o papel de servir a causa pública, estando agora a tentar com as SRU recuperar uma parte do trabalho que a EPUL fazia».

«Errar toda a gente erra, agora é preciso corrigir os erros. Para corrigir os erros é preciso ter vontade política», conclui.

 

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